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Bom apetite, antropófagos!

Salvador, Pindorama, ano 456 da deglutição do Bispo Sardinha.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Seleção de passagens de Montaigne em "Dos Canibais"

Voltando ao meu assunto, creio que não há nada de bárbaro ou de selvagem nessa nação, a julgar pelo que me foi referido; sucede, porém, que classificamos de barbárie o que é alheio aos nossos costumes; dir-se-ia que não temos da verdade e da razão outro ponto de referência que o exemplo e a ideia das opiniões e usos do país a que pertencemos. Neste, a religião é sempre perfeita, perfeito o governo, perfeito e irrepreensível o uso de todas as coisas. Aqueles povos são selvagens na medida em que chamamos selvagens aos frutos que a natureza germina e espontaneamente produz; na verdade, melhor deveríamos chamar selvagens aos que alteramos por nosso artifício e desviamos da ordem comum. Nos primeiros, as verdades são vivas e vigorosas, e as virtudes e propriedades mais úteis e naturais do que nos últimos, virtudes e propriedades que nós abastardamos e acomodamos ao prazer do nosso gosto corrompido. E, todavia, em diversos frutos daquelas regiões, que se desenvolvem sem cultivo, o sabor e a delicadeza são excelentes ao gosto, comparando-os com os nossos.
(...)
Essas nações parecem, pois, bárbaras, simplesmente porque mal acusam ainda o rastro do espírito humano e estão muito próximas da sua ingenuidade original. As leis naturais que as regem estão ainda muito pouco adulteradas pelas nossas; mas há nisso tal pureza que lamento, às vezes, que delas não houvesse conhecimento antes, nos tempos em que existiam homens que as sabiam julgar melhor do que nós.
(...)
Vivem numa região do país muito aprazível e tão saudável que, segundo me dizem meus testemunhos, é raro encontrar-se lá uma pessoa doente; e asseguram–me também que nunca lá viram gente com tremuras, nenhum remelento, desdentado ou vergado sob o peso da velhice. Estão estabelecidos ao longo do mar, e defendidos do lado da terra por grandes e altas montanhas que se estendem a distância de cem léguas do mar aproximadamente. Têm em abundância carne e peixes, que em nada se assemelham aos nossos e que comem sem condimento, apenas assados. O primeiro homem que lhes apareceu montado a cavalo, embora já se tivessem relacionado com ele em várias viagens anteriores, causou-lhes tanto horror naquela postura que o mataram a setadas antes de o reconhecerem. Suas casas são muito compridas, com capacidade para duzentas ou trezentas almas. Cobrem-nas com a casca de grandes árvores, estão fixas à terra por um extremo e apoiam-se dos lados umas contra as outras, como algumas das nossas granjas; a parte que as cobre chega até ao solo, servindo-lhes de flanco. Têm madeira tão dura que a usam para cortar, e com ela fazem espadas e grelhas para assar os alimentos. Os leitos, feitos de tecido de algodão, estão suspensos do tecto como os dos nossos navios, e cada um ocupa o seu, porque as mulheres dormem separadas dos maridos. Levantam-se ao nascer do sol e comem logo depois, para todo o dia; porque não fazem outra refeição. Durante esta não bebem, como outros povos do Oriente, os quais, segundo Suidas, só bebem fora das comidas, mas várias vezes ao dia e abundantemente. Sua bebida é feita de certa raiz, e tem a cor dos nossos vinhos claretes. Só a bebem morna. Não se conserva senão dois ou três dias, tem o gosto um pouco picante, não sobe à cabeça, é boa para o estômago, e tem o efeito de um laxante para os que não estão habituados a ela, mas para os outros é muito agradável. Em vez de pão, comem determinada substancia branca, uma espécie de coentro açucarado. Provei-a; é doce e um tanto insípida. Passam o dia a dançar. Os mais moços dedicam-se à caça grossa, armados de arcos, enquanto uma parte das mulheres trata de esquentar a bebida, sua principal ocupação. Há sempre um ancião que, de manhã, antes da comida, faz prédicas em comum a todos os habitantes da granjaria, passeando de um lado para o outro, e repetindo várias vezes a mesma exortação até dar a volta à casa (porque são construções que medem uns bons cem passos de comprimento). Só lhes recomenda duas coisas: valor para se defrontarem com os inimigos e amizade para as mulheres. E jamais deixam de ponderar esta última obrigação, repetindo sempre que são elas que lhes conservam a bebida morna e bem temperada. Pode-se ver em certos lugares, e entre eles em minha casa, onde tenho alguns, a forma de seus leitos, de seus cordões, de suas espadas e dos braceletes de madeira com que cobrem os punhos nos combates, bem como das grandes canas abertas em uma das extremidades e ao som das quais marcam a cadência da dança. Trazem a cabeça rapada e fazem a barba muito melhor do que nós, sem necessidade de outra navalha que não seja a madeira e a pedra. Crêem na eternidade das almas: as que merecem bem dos deuses repousam no lugar do céu onde o sol nasce, e as malditas no lado do Ocidente.
Têm não sei que espécie de sacerdotes e profetas que raras vezes se apresentam diante do povo e que vivem nas montanhas. Quando eles chegam, celebra-se uma grande festa, e uma assembleia solene, da qual participam vários povoados (cada granjaria, como já descrevi, forma um povoado, que fica distante do mais próximo uma légua francesa aproximadamente). O profeta fala-lhes em público, exortando-os à virtude e ao dever; mas toda a sua ciência ética se resume em dois artigos: resolução para a guerra e afecto às esposas. Fazem-lhes prognósticos sobre as coisas do futuro e os acontecimentos que devem esperar de suas empresas, encaminhando-os ou desviando-os da guerra. Mas, se falham no adivinhar, se acontece o contrário do que predizem, são presos, esquartejados em mil pedaços e condenados. como falsos profetas. Assim, o que uma vez se engana desaparece para sempre.
(...)
Fazem as guerras às nações situadas do outro lado das montanhas, terra a dentro; vão a elas completamente nus, levando como únicas armas arcos e espadas de madeira aguçadas na ponta, como as línguas dos nossos venábulos. É coisa de maravilhar a firmeza de seus costumes, que acabam sempre em mortandade ou em efusão de sangue, pois não sabem o que seja fuga ou pânico. Cada qual traz por troféu a cabeça do inimigo a quem deu morte, e pendura-a à entrada de sua casa. Depois de terem dado por algum tempo bom trato aos prisioneiros, facilitando-lhes todas as comodidades ao alcance de sua imaginação, o chefe congrega seus amigos em uma grande assembleia; ata uma corda a um dos braços do prisioneiro, segurando na outra ponta, a alguns passos de distância, com medo de ser ferido, e dá o outro braço a segurar, da mesma forma, ao melhor de seus amigos; então ambos o abatem a golpes de espada, perante toda a assembleia. Feito isto, assam-no e comem-no entre todos e enviam alguns pedaços aos amigos ausentes. Isto não é, como se poderia imaginar, para alimento, como os antigos Citas, mas sim para levar a vingança ao último extremo. E a prova é que, sabendo que os Portugueses, que se tinham aliado com os seus adversários, aplicavam outra espécie de morte aos canibais quando estes caíam prisioneiros, morte que consistia em enterrá-los até à cinta e assestar à parte descoberta grande número de setas, enforcando-os depois, pensaram que, como eram gente do outro lado do mundo, e tinham propagado o conhecimento de muitos vícios entre os povos seus vizinhos e os avantajavam na mestria de toda a sorte de malícias, não realizavam sem razão aquele género de vingança mais dura que a sua, começaram a abandonar seu antigo método para adoptar aquele. Não me pesa acentuar o horror bárbaro que tal acção (significa, mas sim que tanto condenemos suas faltas e tão cegos sejamos para as nossas. Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo que morto, dilacerar com tormentos e martírios um corpo ainda cheio de vitalidade, assá-lo lentamente e arrojá-lo aos cães e aos porcos, que o mordem e martirizam (como vimos recentemente, e não lemos, entre vizinhos e concidadãos, e não entre antigos inimigos, e, o que é pior, sob pretexto de piedade e de religião) que em o assar e comer depois de morto.
(...)
Podemos, pois, achá-los bárbaros em relação às regras da razão, mas não a nós, que os sobrepassamos em toda a espécie de barbárie. Sua guerra é toda nobre e generosa e tem tanta desculpa e beleza quanta se pode admitir nessa calamidade humana; seu único fundamento é a emulação pela virtude. Não lutam para conquistar novas terras, pois ainda desfrutam dessa liberdade natural que, sem trabalhos nem penas, lhes dá tudo quanto necessitam e em tal abundância que não precisam de alargar seus limites. Encontram-se ainda nesse estado feliz de não desejar senão o que as suas necessidades naturais reclamam; o que for além disso é para eles supérfluo. Geralmente, entre os da mesma idade, chamam-se irmãos; filhos, os mais novos, e os velhos consideram-se pais de todos. Estes deixam a seus herdeiros a plena posse dos seus bens em comum, só com o título todo puro que a natureza concede a suas criaturas ao depositá-las no mundo. Se seus vizinhos transpõem as montanhas para os atacar e são vencidos, o único lucro do vitorioso é a glória e a mercê de os haver dominado em valor e virtude; aliás, de nada lhe serviriam os bens dos vencidos, porque quando regressa ao seu país nada lhe falta do que necessita, nem mesmo essa grande qualidade de se saber felizmente conformar com a sua condição e viver contente com ela. O mesmo se dá com os outros. Para o resgate dos prisioneiros exigem-lhes apenas a confissão e o reconhecimento da derrota; mas não se encontrou um em todo um século que não preferisse a morte a quebrantar, de ânimo ou palavra, um só ponto da grandeza da sua invencível coragem, ou que não preferisse ser morto e comido a pedir clemência. Dão-lhes todas as comodidades imagináveis para que a vida lhes seja mais grata, mas, ameaçam-nos frequentemente com a morte futura, com os tormentos que os esperam, com os preparativos feitos para tal fim, com a destruição dos seus membros e o festim que celebrarão à sua custa. Fazem tudo isso para lhes arrancar da boca alguma palavra de fraqueza ou de humilhação, ou os induzir a fugir, vangloriando-se então de os terem amedrontado e quebrantado a sua firmeza.
(...)
Voltando à nossa história, os prisioneiros, longe de se renderem diante do que se lhes faz, conservam um ar alegre nos dois ou três meses que estão em poder do inimigo; incitam seus donos a apressar-lhes a morte; desafiam-nos, injuriam-nos, lançam-lhes em rosto a sua covardia e o número de batalhas por eles perdidas contra os seus. Conservo uma canção feita por um desses prisioneiros, onde se encontra este lance: “Que venham todos quanto antes, e se reúnam a comer minha carne, porque comerão ao mesmo tempo a de seus pais e avós, que outrora alimentaram e nutriram meu corpo. Estes músculos, diz ele, esta carne e estas veias são as vossas, pobres loucos; não reconheceis que a substância dos membros dos vossos antepassados ainda está em mim’? Saboreai-os bem, que acháreis o gosto da vossa própria carne”. Nesta composição não se adverte por forma alguma a barbárie. Os que os pintam moribundos e os representam no momento do sacrifício, pintam o prisioneiro cuspindo na cara de seus matadores e fazendo-lhes visagens. Em verdade, não deixam até ao último suspiro de os insultar e desafiar por palavras e obras. Eis aqui, sem mentir, homens completamente selvagens em contraste conosco; porque ou eles o são na realidade, ou o somos nós. Há uma enorme distância entre a sua maneira de ser e a nossa.
Os homens possuem várias mulheres, e tantas mais quanto maior for a sua reputação de valente. Entre os casados, é coisa bela ,e digna de nota que o zelo, que nossas mulheres põem em nos evitar a amizade e a benevolência das demais, põem as deles em lhas adquirir. Prezando a honra dos maridos sobre todas as coisas, usam da maior solicitude em agenciar o maior número possível de companheiras, pois quanto maior for o número destas melhor será o testemunho das virtudes do marido.
(...)
E, para que não se pense que tudo isto obedece a uma simples e servil obrigação a que estão ligadas, ou a qualquer espécie de antiga submissão à autoridade dos maridos, à falta de discernimento e cordura, ou a terem a alma tão entorpecida que não são capazes de mais, mostremos alguns traços da sua inteligência. Além do que já citei de uma de suas canções guerreiras, conservo outra, amorosa, que começa assim: “Detém-te, cobra; detém-te, para minha irmã tirar do padrão de tuas cores o modelo e o desenho de um rico cordão que quero dar a minha amiga; que a tua beleza e condição sejam sempre louvadas entre todas as serpentes”. Esta primeira estrofe é o estribilho da canção. Ora, eu tenho bastante convívio com a poesia para julgá-la, e parece-me que não somente nada há de barbárie em sua inspiração, mas que é também completamente anacreôntica. A linguagem, aliás, é doce e de som agradável, parecendo-se nas terminações com a língua grega.

Citação antropofágica de Nietzsche

“Esquecer não é uma simples vis inertiae[força inercial], como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou ‘assimilação física’”.
GENEALOGIA DA MORAL, págs.57-58.

A ANTROPOFAGIA OSWALDIANA COMO FILOSOFIA TRÁGICA (resumo)

O texto discute o caráter trágico - no sentido que Nietzsche interpreta essa concepção em suas obras Crepúsculo dos ídolos e Ecce homo - da concepção filosófica da Antropofagia, elaborada por Oswald de Andrade e apresentada nos textos publicados a partir de 1944, particularmente A crise da filosofia messiânica(1950), Um aspecto antropofágico da cultura brasileira(1950) e A marcha das utopias(1953). A discussão da perspectiva trágica da filosofia antropofágica de Oswald se apóia também na análise dessa produção teórica em conexão com seu Manifesto antropófago, de 1928, cujas intuições poéticas são retomadas pelo autor quando este busca dar à antropofagia o status de uma visão-de-mundo (Weltanschauung).

Após apresentar a concepção nietzschiana de filosofia trágica, considera-se a influência do pensamento nietzschiano no modo como Oswald pensa o que ele chamou de “sentimento órfico”, com seu “caráter orgiástico”, que se desenvolve a partir do “instinto antropofágico”, enquanto “instinto lúdico”.

Mostra-se como isso é conduzido no sentido da transmutação de valores operada pela “transformação do tabu em totem”, inversão da tendência repressora dos processos de socialização, descrita pela interpretação freudiana em Totem e tabu.

Isto aponta para uma valorização da experiência do ócio criativo característico das culturas primitivas em confronto com os valores religiosos promovidos pelo sacerdócio (interpretado por Oswald como ócio sagrado) e os valores capitalistas do mundo dos negócios (interpretado por ele como negação do ócio).

O caráter trágico do pensamento antropofágico de Oswald será então evidenciado pela sua afirmação da vida como devoração, ou seja, devir apropriativo dos acontecimentos da existência em sua singularidade, capaz de digerir as experiências vividas e incorporar os impulsos mais vitais. A alegria seria então, nesse modo antropofágico de viver, “a prova dos nove” da afirmação trágica da vida que Nietzsche chamou de sabedoria dionisíaca.

O MATRIARCADO DE PINDORAMA

VARIAÇÕES SOBRE O MATRIARCADO

Foi Friedrich Nietzsche quem divulgou uma curiosa descoberta de seu compatriota e contemporâneo Bachofen, a respeito do que se chamou depois de revolução patriarcal ou do direito paterno. (201)

Esse passado onde o domínio materno se institui longamente, fazendo que o filho não fosse de um só homem individualizado, mas, sim, o filho da tribo, está hoje muito mais atenta e favoravelmente julgado pela sociologia (...) Caminha-se por todos os atalhos e todas as estradas reais para que o a criança seja considerada o filho da sociedade e não como sucede tão continuamente, no regime da herança, como filho de um irresponsável, de um tarado ou de um infeliz que não lhe pode dar educação e sustento. A tese matriarcal abre rumo. (204)

AINDA O MATRIARCADO

Já assinalei que a tendência de todas as legislações e a de todas as sociedades atuais é considerar e defender a criança como um produto social. Cresce o número de crianças abandonadas (...) Mas já se esboça sem dúvida, como aqui, em toda a terra civilizada, a tendência de incorporar a criança mais no corpo social do que ao grupo familiar. (205)

O homem flutua e flutuará sempre enquanto for homem, nas dobras da dúvida, no mistério da fé e no imperativo da descrença, no abismo órfico que o acompanha do berço ao túmulo. Mas, poder-se-ão, por acaso, negar os prodígios conseguidos através de guerras sangrentas, de sacrifícios trágicos, de entregas absolutas, que começam a dourar os dias do século presente?(...) Trata-se apenas de resolver um problema – o da conquista do ócio. (209)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

A MARCHA DAS UTOPIAS (1953)

Entendendo como entendo o sentimento religioso universal a que chamo de sentimento órfico, o qual atinge e marca todos os povos civilizados como todos os agrupamentos primitivos, isso de nenhuma forma toca a minha eqüidistância de qualquer culto ou religião. (152)

O ócio fora também, em todas as religiões, tido como um dom supremo, particularmente pelo sacerdócio, detentor de ócio sagrado que distingue e enobrece os mediadores de Deus. (158)

Por toda a parte, o relógio mecânico inaugura a civilização da máquina que é a do trabalho e do tempo contado. (159)

As classes ociosas, dividindo o poder entre guerreiros e sacerdotes, tinham dominado a Idade Média. Uma pequena excursão filológica pelas variações do vocábulo “ócio” elucida o assunto. Assim, sacerdócio é ócio sagrado, como já dissemos. Negócio é negação do ócio. (160)

O século XIX não estava aparelhado para o estudo do problema de Deus. Nele, Marx, Nietzsche e Freud, forças gigantescas para a chave dos problemas históricos e humanos, eram bebês de mama. (172-173)

É que ninguém arranca do homem isso que eu chamo em alto sentido de “sentimento órfico” (...) O que persiste no fundo é o sentimento do sagrado que se oculta no homem, preso ao instinto da vida e ao medo da morte (...) sabe-se hoje o que o cristianismo deve aos mitos pagãos das ressureições primaveris, ao próprio orfismo grego e à contribuição de cultos estranhos a sua ortodoxia. (173)

Seria preciso que aparecesse no século XIX o gênio de Nietzsche, acolitado por Erwing rohde e Burckhardt para que se restaurasse a Grécia dionisíaca e a Grécia órfica. (175)

A Guerra Holandesa é, por si, a justificativa da independência de um povo. (178)

Na Guerra holandesa vencia, evidentemente, uma compreensão lúdica e amável da vida, em face dum conceito utilitário e comerciante (...) Era o ócio em face do negócio. O ócio vencia a áspera e longa conquista flamenga, baseada no primeiro lucro e na ascensão inicial da burguesia. O Deus bíblico, cioso, branco e exclusivista era batido, no seu culto, reformado pela severidade e pelo arbítrio, por uma massa órfica, híbrida e mulata a quem a roupeta jesuítica dera as procissões fetichistas, as litanias doces como o açúcar pernambucano e os milagres prometidos. (184)

Tratava-se apenas da primeira luta titânica, no mundo moderno, entre o ócio e o negócio. E o ócio venceu. (189)

O primitivo, que, pela sua teimosa vocação de felicidade, se opunha a uma terra dominada pela sisudez de teólogos e professores, só podia ser comparado ao louco ou à criança.

Dividiu-se então o mundo entre duas categorias de seres: a superior, que tinha como seu padrão “o adulto, branco e civilizado”, e a outra, que juntava no mesmo comboio humano “o primitivo, o louco e a criança”. Esse esquema fácil ultrapassou o século XIX que não atendeu aos rugidos proféticos de Marx, ao sol novo de Nietzsche e aos abismos siderais de Freud.(191)

Texto apresentado por Oswald no Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia

UM ASPECTO ANTROPOFÁGICO DA CULTURA BRASILEIRA: O HOMEM CORDIAL (1950)

Pode-se chamar de alteridade ao sentimento do outro, isto é, de ver-se o outro em si (...) A alteridade é no Brasil um dos sinais remanescentes da cultura matriarcal. (141)

“Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Nossa forma ordinária de convívio social é , no fundo, justamente o contrário da polidez”. (Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, cap. V)

O “Homem cordial” tem no entanto dentro de si a sua própria oposição. “Ele sabe ser cordial como sabe ser feroz” (...) No contraponto agressividade – cordialidade, se define o primitivo em Weltanschauung (...) Compreende a vida como devoração e a simboliza no rito antropofágico, que é comunhão. (143)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Retrato de Oswald por Tarsila

Primeiro texto de elaboração da Antropofagia por Oswald

MEU TESTAMENTO (1944)

O sarcasmo, a cólera e até o distúrbio são necessidades de ação e dignas operações de limpeza, principalmente nas eras de caos (23)

A moral socrática, apesar de seu tom de conquista social, levado avante por Platão e expresso na ética aristotélica (A humanidade tende ao bem geral) – apesar desse tom social – a moral socrática era a oposição individualista ao ciclo dionisíaco que a precedera. Isso não foi totalmente visto por Nietzsche. (26)

A vida na terra produzida pela desagregação do sistema solar, só teria um sentido – a devoração. Mas se bem que eu dê à Antropofagia os foros de uma autêntica Weltanschauung, creio que só um espírito reacionário e obtuso poderia tirar partido disso para justificar a devoração pela devoração. (28)

A diferença porém é frisante na atual transmutação de valores (...) Note que as massas sempre tenderam ao mitológico no seu desenvolvimento espiritual. Talvez hoje seja uma porta mística a que se escancara para elas, na História, mas na direção inflexível das realizações terrenas. Desta terra, nesta terra, para esta terra. E já é tempo. (29)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Seleção de passagens de A crise da filosofia messiânica

A operação metafísica que se liga ao mito antropofágico é a da transformação do tabu em totem. Do valor oposto ao valor favorável. A vida é devoração pura. Nesse devorar que ameaça a cada minuto a existência humana, cabe ao homem totemizar o tabu. (77-78)

Friedrich Nietzsche afirmou que o habitat dos grandes problemas é a rua. (78)

A Filosofia nunca foi uma disciplina autônoma. Ou a favor da vida ou contra ela, iludindo os homens ou neles acreditando, a Filosofia dependeu sempre das condições históricas e sociais em que se processou.
Eis a primeira afirmação da presente tese que coincide não somente com Karl Marx, mas com Kierkegaard e Friedrich Nietzsche. (79)

A história do sacerdócio caracteriza-se como fonte do que Friedrich Nietzsche havia de chamar a Moral de Escravos. (82)

No mundo supertecnizado que se anuncia, quando caírem as barreiras finais do Patriarcado, o homem poderá cevar a sua preguiça inata, mãe da fantasia, da invenção e do amor. E restituir a si mesmo (...) o seu instinto lúdico. (83)

A idéia de Juízo Final é de origem persa. Pertence à mitologia masdaísta. E de Zaratustra ao Miguelangiolo da Sixtina, ela é a base escatológica do Messianismo. Com ela toma corpo o sacerdócio e fixa um dos seus argumentos confessionais, o Patriarcado. (88)

Eis a juventude gidiana criada por Sócrates, a que se reduz, na decadência, a Grécia homérica e dionisíaca, a Grécia de Ésquilo, de Heráclito, de Empédocles e de Sófocles (...) Nietzsche, com a bravura do seu gênio, não fustigou suficientemente este puritano fescenino das ruas empoeiradas da Atenas do V século. Mas soube perfeitamente vê-lo segundo Jaeger como o responsável pela “petrificação intelectualista da filosofia escolástica que encadeou a humanidade por meio milênio e cujos últimos brotos se encontraram nos sistemas teologisantes do chamado idealismo alemão”. (92)

O que Nietzsche diz sobre a filosofia alemã, que não passa de uma “teologia astuta”, é confirmado pela volta a Sócrates que se denuncia na chamada “filosofia dos valores” (...)
De Sócrates sai o esquema do perfeito boneco humano, longamente exaltado pelas classes dominadoras, a fim de se conservar, domado e satisfeito, o escravo. É o “piedoso”, o “justo”, o “continente”, o “prudente”. Nele refulgem as virtudes do rebanho, como definiu Friedrich Nietzsche. (93)

Somente a inversão interessada do sentido da existência, feita pelas classes dominantes, traria até o fogo purificador de Friedrich Nietzsche, sem exame e sem crítica, o compêndio central do espírito de servidão que são os ensinamentos socráticos. Neles o patriarcado constrói a sua sofística triunfal. (...)
Sócrates é a oposição a toda medida eufórica que os gregos guardavam de sua alta antiguidade. Contra o politeísmo, ele lança o Deus único. Contra o sentido precário da vida de Heráclito, ele lança a imortalidade da alma. Contra a visão conflitual do mundo de Empédocles, lança a imutabilidade do Bem. (94)

O contato místico descera do caráter orgiástico que tinha na Grécia (mistérios órficos, festas dionisíacas) e que se conserva ainda nos povos primitivos, para constituir no civilizado a mais secreta das experiências íntimas. (104)

Cícero já reivindicava – otium cum dignitate.
O homem, o animal fideísta, o animal que crê e obedece, chegou ao termo do seu estado de Negatividade, às portas de ouro de uma nova idade do ócio. Nela não se propõe o problema da liberdade. Esta só existe como reivindicação, quando o homem passa a escravizar o próprio homem, a negar-se como Ser determinado por ela, a liberdade, isto é, no Patriarcado.(...)
O inexplicável para críticos, sociólogos e historiadores, muitas vezes decorre deles ignorarem um sentimento que acompanha o homem em todas as idades e que chamamos de constante lúdica.
O homem é o animal que vive entre dois grandes brinquedos – o Amor onde ganha, a Morte onde perde. Por isso, inventou as artes plásticas, a poesia, a dança, a música, o teatro, o circo e, enfim, o cinema. (126)

A arte livre, brinco e problema emotivo, ressurgirá sempre porque sua última motivação reside nos arcanos da alma lúdica. (127)

O homem, como o vírus, o gen, a parcela mínima da vida, se realiza numa duplicidade antagônica, - benéfica, maléfica – que traz em si o seu caráter conflitual com o mundo. (129)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Antropofagia nas artes plásticas

No dia 11 de janeiro de 1928, a pintora Tarsila do Amaral oferece a Oswald de Andrade, como presente de aniversário, uma de suas recentes pinturas, sem saber que ela viria a ser a propulsora de uma das mais originais formulações teóricas sobre a natureza específica da arte moderna brasileira. Enquanto contemplava aquele estranho homem pintado por Tarsila, de pés enormes fincados na terra, cuja pequena cabeça parece apoiar-se melancolicamente em uma das mãos, cercado por um ambiente seco e quente, tendo como testemunha apenas o céu azul, o sol e um misterioso cacto verde, Oswald de Andrade foi indagado por seu amigo e escritor Raul Bopp, que o acompanhava na observação: "Vamos fazer um movimento em torno desse quadro?". Abaporu, 1928, que em tupi-guarani significa "antropófago", foi o nome escolhido para aquela figura selvagem e solitária.
Funda-se em seguida o Clube de Antropofagia, juntamente com a Revista de Antropofagia, em que é publicado o Manifesto Antropófago escrito por Oswald de Andrade como o cerne teórico do movimento nascente, que se dissolve com a separação entre ele e Tarsila, em 1929. Com frases de impacto, o texto reelabora o conceito eurocêntrico e negativo de antropofagia como metáfora de um processo crítico de formação da cultura brasileira. Se para o europeu civilizado o homem americano era selvagem, ou seja, inferior, porque praticava o canibalismo, na visão positiva e inovadora de Andrade, exatamente nossa índole canibal permitira, na esfera da cultura, a assimilação crítica das idéias e modelos europeus. Como antropófagos somos capazes de deglutir as formas importadas para produzir algo genuinamente nacional, sem cair na antiga relação modelo/cópia, que dominou uma parcela da arte do período colonial e a arte brasileira acadêmica do século XIX e XX. "Só interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago", bradou o autor em 1928.
Em linhas gerais, o Modernismo da Semana de 22 caracteriza-se por uma dupla vocação: atualizar o ambiente artístico brasileiro, colocando-o em contato com as diversas linguagens das vanguardas européias e ao mesmo tempo voltar-se para apreensão do Brasil, em um projeto consciente de criação de uma arte brasileira autônoma. Uma proposta de equação entre as duas inclinações (internacionalista e nacionalista) já se encontra no centro do Manifesto Pau-Brasil, 1924, de Oswald de Andrade, no qual o autor resolve o problema da tensão entre a cultura civilizada e intelectual do colonizador e a nativa e primitiva do colonizado mediante um "acordo harmonioso que se produziria na realidade, graças a um processo de assimilação espontânea entre 'a floresta e a escola' ", como notou Benedito Nunes.
Se em 1928 o escritor não abandona por completo esse ideal utópico de síntese entre o modelo europeu e a experiência do primitivo, acrescenta-lhe, no entanto, o primitivismo como arma crítica seletiva, na imagem do selvagem que devora e assimila apenas o que interessa, destruindo todo o resto. Proclama - contra todas as "catequeses", todos os importadores de consciência enlatada, o Padre Vieira, as elites vegetais, a verdade dos povos missionários, o índio de tocheiro, Anchieta, Goethe, e a corte de D. João VI e, por fim, a realidade social, vestida e opressora - a "realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituição e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama". Pois se é inevitável a assimilação das conquistas da civilização moderna, é preciso que o brasileiro se eleve à cultura "desde que conserve as qualidades bárbaras das origens bugre e africana", como observou Mário Pedrosa.
Nota-se que Oswald de Andrade exerce esse mesmo procedimento antropofágico ao transformar o estigma de canibal em qualidade, afirmando-o positivamente como constituinte da essência desrecalcada brasileira. Naturalmente não é o primeiro a utilizar a imagem do antropófago. Esta é corrente na literatura européia dos anos 1920, valorizada sobre o pano de fundo da redescoberta das culturas primitivas da África, América e Oceania pelas vanguardas artísticas. A temática do canibalismo comparece em autores tão diversos quanto o poeta futurista Filippo Marinetti, o pintor surrealista Francis Picabia, que edita sua revista Cannibale em 1920, o poeta Blaise Cendrars, entre outros. Certamente o autor dialoga com o movimento europeu, mas confere a imagem originalidade quando a transforma em metáfora de um procedimento criativo, ativo e crítico, gerador de uma arte brasileira moderna e autônoma.
No caso de Tarsila do Amaral, o procedimento poético de sua pintura, dita antropofágica (1928 a ca.1929) - que além do Abaporu, compreende também O Ovo [Urutu], 1928, A Lua, 1928, Floresta, 1929, Sol Poente, 1929, Antropofagia, 1929, entre outras, e da qual A Negra, 1923 é considerada precursora - caracteriza-se pela "desarticulação da forma construtiva", mediante a submersão na "materialidade cultural" brasileira. Sem esquecer o aprendizado moderno de redução formal e planificação do espaço pictórico, a artista cria, com o uso estilizado de formas arredondadas e cores emblemáticas (principalmente tons fortes de amarelo, verde, azul, laranja e roxo), um alegre universo "selvagem", que se liga a um mundo onírico, mágico (das lendas indígenas e africanas), primitivo, profundamente enraizado na cultura popular brasileira. Entretanto, vale lembrar, seguindo a argumentação de Sônia Salzstein, que a fase "antropofágica" de Tarsila não deve ser considerada como simples ilustração de uma teoria. Seu próprio desenvolvimento artístico a teria levado a esse momento de relação crítica com o aprendizado francês, de certa forma antevendo plasticamente a plataforma antropofágica oswaldiana.
A partir dos anos 1930, com o agravamento da situação econômica e social com o craque da Bolsa de Nova York em 1929, do qual Oswald de Andrade é uma das vítimas, e a instauração do período getulista (1930-1945), a questão do "moderno" como tensão entre nacional e internacional toma outros rumos, sendo discutida em termos diversos, pelo menos até o fim dos anos 1960. Oswald renega o "sarampão antropofágico" durante os anos 1930, voltando a ele somente no fim da década de 1940. A idéia de antropofagia como procedimento estético só é conscientemente retomada, em meados dos anos 1960, com a montagem da peça O Rei da Vela, pelo Teatro Oficina, e o movimento tropicalista de 1967-1968. A institucionalização desse conceito dá-se em 1998 quando a 24ª Bienal Internacional de São Paulo, de maneira discutível, é organizada segundo o tema "Antropofagia e Histórias de Canibalismo", propondo a construção de uma outra história mundial da arte, ou seja, uma história que adotasse um ponto de vista não-eurocêntrico. Propõe-se então a atualização e, curiosamente, a internacionalização da antropofagia oswaldiana.

sexta-feira, 26 de março de 2010

AUTOPOIESIS DO CORPOEMA

AUTOPOIESIS CORPOEMA

A autopoiesis corpoema se define como uma vivência de experimentação criativa em linguagens artísticas com o sentido de autocriação que busca simultaneamente poetizar a existência e incorporar a criação poética.
Autopoiesis pode ser considerado como o processo da vida de criar a si mesma, inventar-se e produzir a si mesma como um modo de ser que se manifesta em constante mutação, algo que se organiza a partir de um ambiente e assume um modo próprio de relacionar-se com seres afins e outros, integrando-se com os primeiros e diferenciando-se dos outros, gerando um caminho que se define por um sentido de existência: sua vontade de auto-realização.
Esta compreensão das chamadas sinergias é a síntese que parte da sabedoria arcáica profunda e exerce uma crítica radical dos valores e das relações de poder. Ela compreende a prática da autogestão, a partir de cada pessoa, nas mais diversas formas próprias a cada unidade social: grupos, famílias, comunidades, federações, sindicatos, associações, condomínios, escolas, universidades, movimentos culturais e outras entidades com diferentes graus de institucionalização.
A autonomia é compreendida então como uma manifestação da autopoiesis no nível social das relações vividas pelos agentes pessoais e coletivos da história.
A poesia enquanto criação simbólica de linguagem assume formas de versões imaginárias da realidade da vida e se expressa de modo original por cada poeta que eleva sua voz, ainda que silenciosa, para torná-la uma tradução dos conteúdos próprios às suas diversas experiências culturais, ou ainda, uma expressão singular da sensibilidade, que traduz a presença de espírito gerada pela ligação afetiva com sua gente.
O desenvolvimento da poeticidade é um caminho para a autopoiesis que favorece a autonomia através da experimentação comunicativa. A poeticidade pode ser entendida como uma qualidade que incita à autonomia através de práticas comunicativas que libertam a expressividade e aproxima as pessoas interativamente pelas afinidades de produção cultural.
Os momentos críticos tornam necessárias uma crítica radical e uma criação inovadora, portanto, se entrar em crise, crie!

Texto de Julian Beck do Living Theatre

A TRIBO

A tribo é um grupo de pessoas enlaçadas pelo Amor. Dessa forma encontram formas de sobreviver, e dessa maneira a tribo exerce uma fascinação especial em uma sociedade carente de amor. A sociedade tolera as comunidades experimentais na medida em que pensa que elas somente dedicam-se a achar soluções para os problemas que nos colocam as proposições utópicas impraticáveis. Se não encontram as soluções práticas e concretas, terminarão por si mesmas. Se encontram as soluções, a sociedade tenta apoderar-se delas para as neutralizar. A palavra tribo é aqui utilizada para descrever grupos de pessoas que se acham próximos aos grupos étnicos, que não chegaram a perder nunca sua relação com a terra, o sol, a lua, o vento, a água, o fogo, a alegria, o prazer de conviver, de trocar as coisas primárias... Grupos cuja existência é o testamento de um certo tipo de natureza não artificial, que lida com a vida sem arrasá-la, buscando harmonia com a natureza das coisas. A tribo é um modo de fazer coisas divertidas e inteligentes juntos. Cada membro pretende o benefício e o bem estar de todos os membros. Uma comunidade onde os indivíduos não estão alienados uns dos outros. Movendo-se numa sociedade que morre de solidão e de seus terríveis efeitos – o amor artificial, a morte prematura por rivalidade ou inimizade, a morte por dinheiro, a morte por envenenamento do gás das indústrias e de nossas instituições e moralismos caducos – a tribo tem sobrevivido às forças opostas dos tempos graças à ajuda mútua. A influência da estrutura é forte e nós somos fracos. Mas nessa batalha vence o frágil, porque o forte está rígido e podre, mas os frágeis são flexíveis e estão vivos.

Extraído do livro “ The life of the theater” de Julian Beck

MANIFESTO ANTROPÓFAGO (1928 - Oswald de Andrade)

MANIFESTO ANTROPÓFAGO
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismo (sic). De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos turistas. No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade prelógica para o Sr. Levi Bruhl estudar.
Queremos a revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
Filiação. O contacto com o Brasil Caraíba. Oú Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, á Revolução Bolchevista, á Revolução surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O individuo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Kosmos ao axioma Kosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas operas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipejú. [1]
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxilio de algumas formas gramaticais.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o
Só não há determinismo, onde há mistério. Mas que temos nós com isso?.
Contra as historias do homem, que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É a mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.
Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social planetário.
As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios, e o tédio especulativo.
De William James a Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.
O páter-famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + falta de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar a idéa de Deus. Mas o caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage como os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças publicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos nove.
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor quotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados do catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciarias do matriarcado de Pindorama.
OSWALD DE ANDRADE.
Em Piratininga.
Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. [2]
In: Revista de Antropofagia, São Paulo, 1 (1), maio de 1928.

Notas:
[1] “Lua Nova, ó Lua Nova, assopra em Fulano lembranças de mim.” In: O selvagem, de Couto de Magalhães.
[2] O Bispo Pero Sardinha foi devorado pelos caetés em 1556.